ESTUPROS COMO PRESENTE DE ANIVERSÁRIO
O que aconteceu em Queimadas, cidade paraibana perto de Campina Grande, é uma das coisas mais bárbaras que ouvi nos últimos tempos. Ainda temos algumas informações desencontradas, mas basicamente foi isso: na madrugada de domingo, dia 12 de fevereiro, uma festa de aniversário com cerca de 15 pessoas foi invadida por um grupo de homens encapuzados e fortemente armados. Eles agrediram alguns dos homens, roubaram alguns pertences, e separaram cinco das sete mulheres presentes. Essas cinco mulheres foram estupradas (não fica claro nas notícias por quantos elas foram estupradas). Em seguida, os criminosos fugiram, levando duas mulheres que já haviam sido estupradas, a recepcionista Michele, e a professora Isabela. Michele ainda conseguiu pular do carro em movimento, mas foi perseguida e morta. Ambas foram executadas.
É possível que um caso desses seja mais ultrajante? É sim. Todos os homens na festa sabiam. O plano do estupro coletivo havia sido arquitetado pelo dono da casa, Eduardo, de 28 anos, ex-cunhado de Isabela. Estuprar mulheres seria um presente de aniversário para o irmão, Luciano, de 22 anos. Na hora, eles também vestiram um capuz e estupraram. Só as mulheres deles foram poupadas. Mas Isabela e Michele lutaram, e foram capazes ou de tirar-lhes o capuz, ou a venda com que seus olhos estavam cobertos (depende da fonte). E identificaram os estupradores -- seus conhecidos e amigos. Foram mortas porque viram demais. Eduardo e Luciano ainda compareceram ao velório das duas.
A polícia da Paraíba agiu rápido. Prendeu nove acusados, Eduardo e Luciano inclusos. Espero que sejam condenados à pena máxima, que, no Brasil, é de trinta anos na cadeia.
Ontem a notícia já circulava com força. Alguém deixou um link pra essa barbárie num post, e obteve como resposta de um anônimo: “Isso é coisa de nordestino. Eu tenho vontade de dar uma casa para a Lola em Santa Catarina só para ela deixar essa região tão perigosa do país. Pena que não tenho tanto dinheiro assim”. É troll sem nenhuma humanidade se aproveitando de um crime assombroso pra cometer outro crime, o do preconceito. O troll certamente sabe que estupros ocorrem em toda parte. Até nos países ditos civilizados. Se tem uma coisa universal no mundo, é o estupro de mulheres. Não é exclusividade do nordeste (e, troll, até dois anos atrás eu tinha uma casa em SC, comprada com meu dinheiro. Não preciso da sua preocupação, obrigada). Aliás, os dois mentores do crime, Eduardo e Luciano, são cariocas. Se é que isso importa.
Além do preconceito anti-nordestino, outro fantasma que rondou os tweets ontem foi o dos mascus sanctos. Afinal, eles passaram os últimos meses publicando posts como “Seja homem: estupre e mate uma mulher”. O blog misógino está (felizmente) fora do ar há várias semanas, e torço para que a Polícia Federal esteja fazendo seu trabalho de identificar e indiciar os responsáveis (eu finalmente fiz boletim de ocorrência no final de janeiro). Até agora os sanctos não se manifestaram, mas é só uma questão de tempo. Eles aproveitam qualquer crime de ódio com maior repercussão para assumir a autoria ou parabenizar os culpados. Fazem isso para parecer que são mais que a meia dúzia de covardes anônimos que são.
Duvido que Eduardo e Luciano ou algum dos outros sete presos tenham ouvido falar dos mascus sanctos. Não é preciso. Ninguém precisa ler blogs de ódio para adquirir lições básicas de misoginia. Essas lições básicas estão em todo o canto. E é essa misoginia que faz com que homens como Eduardo e Luciano vejam estupro como um presente de aniversário. Estupro, afinal (e nem aprendemos isso com Rafinha), é uma oportunidade. Ora para a vítima, ora para o estuprador. Vivemos numa sociedade que enxerga o estupro como nada mais do que sexo. Estupro não é visto como ódio às mulheres, nem como violência. É visto como um pequeno descontrole, algo puraramente biológico (é o instinto do macho que o leva a isso! –- se eu dissesse algo assim eu seria misândrica, mas como são os homens que falam, tudo bem), e as mulheres não perdem muito no processo, é só sexo, não tira pedaço. Se o estupro coletivo de Queimadas ficasse "só" no estupro, sem resultar em dois assassinatos, pouca gente estaria tão horrorizada. “Estupra, mas não mata”, já nos dizia Maluf, dando voz a um velho chavão que não foi ele que inventou.
E enquanto essas barbaridades seguem acontecendo, o que fazemos? Continuamos culpando as vítimas (um dos comentários num portal dizia que "as garotas já deviam saber o tipo desses pilantras"). Solidificamos um discurso (aceito até por algumas feministas) de que mulher falar de estupro é se vitimizar. Ao mesmo tempo, os homens (que também adoram falar em vitimização feminista), olham pros lados, assobiam, fingem que estupro é um problema meramente feminino. Ou seja: mulheres, não vamos mencionar estupro, porque estaremos nos fazendo de vítimas. Homens, não mencionem estupro, que o assunto não tem absolutamente nada a ver com vocês. E, quem sabe, dessa forma os estupros milagrosamente deixem de existir.
E dessa forma a gente pode fingir, feliz, que a ideia de estuprar mulheres como presente de aniversário é algo que só acontece na mente de uns poucos doentes. E nos confins do agreste nordestino.
Fonte: Escreva Lola Escreva
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