quarta-feira, 22 de agosto de 2012

LEI MARIA DA PENHA: Lembranças amargas em Gabriela

Mas a noite de terça-feira, 7 de agosto, marcou o grande descompasso entre cidadania e a dramaturgia, cidadania e novela, cidadania e TV Globo. Refiro-me à novela Gabriela, adaptada do romance Gabriela, cravo e canela do genial Jorge Amado, que reúne a chamada prata da casa – Antonio Fagundes, Maitê Proença, José Wilker, Laura Cardoso, Ari Fontoura, Juliana Paes, Mateus Solano, Humberto Martins etc – e investe pesado na recriação de Ilhéus nas primeiras décadas do século 20. Trata-se de esmerada superprodução de TV Globo: fotografia deslumbrante e caracterizações algo como a meio passo da perfeição. A recriação do Bataclan, abrigo das prostitutas da região, verdadeiro Moulin Rouge encravado na geografia baiana, é um capítulo à parte com seu clima de clube de mafiosos tão onipresente na Chicago de 1920.

Mas se a história é saborosa, o elenco impecável – conta até com uma antológica Ivete Sangalo no papel da cafetina Maria Machadão –, a música interpretada por uma faceira Gal Costa é do nosso maestro soberano Tom Jobim, as imagens em tudo se aproximam da qualidade cinematográfica... Então, qual o problema? Qual o descompasso? Qual a razão da implicância?

É que exatamente em 7 de agosto a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) celebrou seu sexto aniversário de vigência. É resultado direto da luta das mulheres brasileiras e do avanço legislativo internacional no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher. Não é extemporâneo recordar que a lei é considerada uma das mais avançadas do mundo e principal instrumento para mulheres se defenderem de seus agressores. E o que isso tem a ver com a superprodução da Vênus Platinada?

O capítulo de Gabriela de 7 de agosto foi quase que inteiramente dedicado à performance do Coronel Jesuino (José Wilker) para lavar com sangue a sua honra: mata a tiros e à queima roupa sua esposa Dona Sinhazinha (Maitê Proença) na cama com seu amante, o dentista Dr. Osmundo (Erik Marmo), que teve o mesmo fim. O capítulo é pródigo em mostrar as mais variadas moções de solidariedade a Jesuíno. E elas vêm dos coronéis, chefes políticos, advogados, políticos, latifundiários, damas da sociedade. Todos concordam entusiasticamente com o ato do assassino confesso.

Em um país onde a violência contra a mulher vem de muito longe, talvez trazida ainda nas caravelas de Cabral, nos idos de 1500, foi no mínimo irônico e de profundo mau gosto comemorar uma infante lei – em vigor há seis anos apenas – trazendo a lume muito do pensamento arcaico, sectário e violento que insiste em sobreviver em nosso inconsciente coletivo, revivendo-o em cenas e falas dos ícones maiores de nossa teledramaturgia.

Curiosamente, poucas horas antes de o capítulo ser exibido, estiveram em solenidade no Senado Federal para comemorar o aniversário da Lei Maria da Penha os atores da TV Globo Malvino Salvador e Oscar Magrini. No fundo, talvez pensassem estar celebrando o sexto aniversário da promulgação de uma hipotética lei... Sinhazinha da Penha.

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[Washington Araújo é jornalista e escritor; mantém o blog http://www.cidadaodomundo.org]

Leia reportagem completa AQUI LEI MARIA DA PENHA: Lembranças amargas em Gabriela

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