Lola Aronovich - http://escrevalolaescreva.blogspot.comSegunda passada publiquei post sobre o terrível caso da cheerleader estuprada por um atleta. Ele, quando finalmente foi condenado (não por estupro, mas por um crime menor), não só não foi preso como teve que pagar uma fiança de 2,500 dólares. Expulsa da equipe por se recusar a torcer pelo estuprador, a vítima processou a escola. A justiça americana não só não lhe deu ganho de causa, como considerou o processo fajuto, e a multou em 45 mil dólares. Ou seja, quando a gente fala que vive numa cultura de estupro, está se referindo a todo um sistema que insiste em manter o estupro impune, a um mundo que vende imagens de estupro como se fossem glamurosas e desejáveis, e a uma sociedade que culpa a vítima, sempre. Escreva um texto sobre estupro, qualquer um. Pode ser o estupro mais escabroso possível, que sempre vai aparecer alguém pra dizer que a mulher é que quis e que é errado culpar o cara. É um paradoxo: apesar de vivermos num mundo em que um terço das mulheres já sofreu algum tipo de abuso sexual, muitas pessoas (homens principalmente) juram que estupro não existe. Quando muito, que é coisa de psicopata.
No sábado retrasado aconteceu de novo. Um funcionário de uma boate em SP foi acusado de estuprar uma moça de 20 anos. Ela, que comemorava a formatura da irmã, estava bêbada. O estupro aconteceu no ambulatório da boate. O funcionário confirma o sexo, mas diz que foi consensual. Aí fica a dúvida: como que uma pessoa caindo de bêbada pode consentir alguma coisa? Penetrar uma mulher que está dormindo não é estupro? Que tal uma paciente em coma?
Quer dizer, essa questão do consentimento é uma das dúvidas. A outra é: imagina só que você vê uma pessoa bêbada passando mal, precisando de ajuda, que a muito custo se arrasta até um ambulatório. O que você faz? a) Você ajuda a pessoa? b) Você a estupra?
Se estupro é uma palavra muito forte, vamos imaginar que uma pessoa de repente passe mal na rua. Assim, do nada, uma pessoa desmaia na sua frente. Você a ajuda ou você aproveita para roubar-lhe os pertences? (Eu não gosto muito dessas comparações porque estupro não tem nada a ver com roubo. Estupro é um dos crimes mais hediondos que existem, e a sociedade sabe muito bem disso — tanto que é uma tática comum nas guerras).
A frequência com que mulheres bêbadas são estupradas (é um dos casos mais típicos em festas universitárias) mostra que, bem, tem muito cara que não vê mal nenhum em se aproveitar, ao invés de ajudar, uma pessoa passando mal. Todos esses caras são psicopatas? E esses aqui, que tirei (tudo sic) dos comentários da matéria do jornal online?
- “Não aconteceu nada demais! A mulher eh MAIOR DE IDADE, portanto plenamente capaz, bebeu por livre e espontanea vontade, foi pra gandaia e depois facilitou as coisas abrindo a guarda e depois de arrependeu. Agora querem prejudicar o funcionário. O único erro do cara foi ter feito isso num ambiente de trabalho. No máximo um mal procedimento.”
- “isso é classico, esquentam os caras e depois querem sair fora...”
- “desde quando ter conjunção carnal com uma moça de 20 anos é ESTUPRO DE VULNERÁVEL?”
- “È adequado uma jovem embriagar-se em simples festa de formatura da irmã? É adequado um empregado do estabelecimento descontrolar-se com isso a ponto de consumar uma violação?”
- “Tudo deve ser apurado mas muito me parece q a garota ficou doidona, ficou com vontade de dar e depois se arrependeu ...”
- “Ei, esta garota viu a novela da GROBO, 21:00, a mocinha que colocava chifre no noivo com um segurança do shopping. Era a fantasia da garota fazer o mesmo. Coitado do cara.”
- “Existe um ditado popular que diz: C... de bêbado não tem dono. Quem bebe deve sempre pensar nisso”.
- “ela bebeu e alega ter sido estuprada? pra mim parece desculpa esfarrapada dela!”
- “O IMPORTANTE É SABER se ela disse, em algum momento, NÃO (OU FEZ MENÇÃO QUE NÃO QUERIA). Caso contrário, o bombeiro está sendo acusado INJUSTAMENTE!”
Esses rapazes que comentam são todos psicopatas? Ou representam um modo de pensar que está impregnado no nosso mundo? Sabe, esse mesmo mundo em que dizem que o feminismo não tem mais razão de ser?
Pra essa gente, fazer sexo com uma mulher incapaz de consentir não é estupro. É uma oportunidade (assine a petição contra a piada rafística!). Afinal, a julgar pelo número de passadas de mão e grosserias a que uma mulher (sóbria!) está sujeita sempre que sai à rua, o corpo de uma mulher já é público. Se ela beber, então... Quem manda ela beber, não é mesmo?
Esses pensadores não estão sozinhos. Uns dez dias atrás tivemos as declarações do bispo de Guarulhos, um que acha misturar religião e política seu dever divino. Dom Luiz Bergonzini é outro que não acredita em estupro, como narra a entrevista que ele deu ao Valor:
"Vamos admitir até que a mulher tenha sido violentada, que foi vítima... É muito difícil uma violência sem o consentimento da mulher, é difícil", comenta. O bispo ajeita os cabelos e o crucifixo. "Já vi muitos casos que não posso citar aqui. Tenho 52 anos de padre... Há os casos em que não é bem violência... [A mulher diz] 'Não queria, não queria, mas aconteceu...'", diz. "Então sabe o que eu fazia?" Nesse momento, o bispo pega a tampa da caneta da repórter e mostra como conversava com mulheres. "Eu falava: bota aqui", pedindo, em seguida, para a repórter encaixar o cilindro da caneta no orifício da tampa. O bispo começa a mexer a mão, evitando o encaixe. "Entendeu, né? Tem casos assim, do 'ah, não queria, não queria, mas acabei deixando'. O BO é para não facilitar o aborto", diz.
O bispo é um psicopata também? Ok, não responda! Qualquer um que use o exemplo da caneta com uma pobre repórter revela total falta de empatia (assine a petição contra as declarações do bispo). Mas psicopatia é isso mesmo: é não sentir empatia pelas vítimas. Então talvez o pessoal que prega que estupro é obra de psicopata tenha razão: só psicopata estupra, e só psicopata justifica estupro. Mas como existem psicopatas neste mundo, hein?
Fonte Universidade Livre Feminista
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