domingo, 22 de agosto de 2010

Representação social interfere em casos de agressão à mulher

Por Valéria Dias, da Agência USP

A visão que os agentes policiais (delegados e escrivães) têm do papel da mulher na sociedade interfere negativamente na interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha. De acordo com a assistente social Marilda de Oliveira Lemos, esse papel, marcado pelas representações sociais próprias da nossa cultura coloca a mulher, em grande parte, como a responsável e restrita ao espaço privado: o lar, os filhos, o marido, sendo dever delas obedecer. Ao homem cabe a conquista do espaço público, como o trabalho, os amigos, o lazer: mandar é um direito.

“Na visão desses agentes policiais, a agressão do homem pode se tornar ‘justificável’ quando o comportamento da mulher foge do padrão”, afirma a pesquisadora. Esse discurso, extremamente sutil e que interfere negativamente na elaboração do Boletim de Ocorrência, foi observado por Marilda em delegados e escrivães de ambos os sexos entrevistados por ela para sua tese de doutorado.

A pesquisa Alívio e tensão: um estudo sobre a interpretação e a aplicação da Lei Maria da Penha nas Delegacias de Defesa da Mulher e Distritos Policiais da Seccional de Polícia de Santo André – São Paulo foi apresentada em abril deste ano na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e foi orientada pela professora Eva Alterman Blay.

A pesquisa de campo foi feita na Seccional de Polícia de Santo André (região metropolitana de São Paulo). Marilda entrevistou 12 agentes policiais, sendo 6 escrivães e 6 delegados, além de 7 mulheres agredidas atendidas nas duas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) da Seccional (uma em Mauá, outra em Santo André). “Como as DDMs funcionam de segunda a sexta-feira, das 8 às 18 horas, decidi fazer um plantão durante um feriado de sexta-feira em um Distrito Policial da seccional apenas para observar a movimentação de mulheres agredidas”, explica.

Pensamentos semelhantes
A representação social de cada um dos sexos está muito arraigada em nossa cultura e tanto os homens como as mulheres têm um pensamento semelhante. “A própria mulher agredida tenta encontrar o que fez de errado. Ela pode ser a melhor mãe, a melhor dona de casa ou a melhor esposa, mas, ao ser agredida, questiona se é tão boa assim.”

Em uma das entrevistas, Marilda lembra o caso de um marido que agrediu a mulher porque ela se recusou a fazer sexo com ele. “O agente fez o seguinte relato: ‘O marido trabalhou o dia todo, chegou cansado e queria um carinho da mulher, mas ela se recusou. Numa situação dessas, ele acaba estourando mesmo, é difícil pra ele se segurar’. A pesquisadora ressalta ainda que, na maioria das vezes, os Boletins de Ocorrência são mal-feitos e inconsistentes do ponto de vista jurídico, não oferecendo elementos necessários para o juiz aplicar as medidas previstas na Lei Maria da Penha.

Uma dessas medidas visa retirar o agressor do mesmo teto da agredida. “A partir da denúncia, existe um prazo de 48 horas para se fazer uma solicitação, que é encaminhada ao Fórum, a fim de que o juiz, também num prazo de 48 horas, determine o afastamento do agressor. O juiz toma a decisão com base no B.O., mas como ele é mal-feito o legislador não tem os elementos jurídicos necessários para autorizar a medida”, explica a pesquisadora.

Entre os agentes entrevistados, uma das reclamações é o fato de, muitas vezes, a mulher retirar a queixa contra o agressor. Segundo Marilda,  há vários elementos que contribuem para a desistência: são dependentes do agressor econômica ou emocionalmente, temem as consequências, e até por vergonha de ficarem sem companheiro. “Muitas ficam com receio de bancar sozinha a casa e a educação dos filhos. Outras sabem que o fato de ficar sem marido ou companheiro vai diminuí-las como mulher perante a sociedade. Não suportam a pressão e resolvem retirar a queixa”, explica.

Marilda também destaca que as agressões não acontecem durante as 24 horas do dia, e sim em determinados momentos. “A mulher acha que o agressor vai mudar de atitude e começa a pensar que consegue promover esta mudança. Mas isso nunca acontece”, diz. A retirada da queixa, segundo a pesquisadora, acontece diante do juiz, quando todo o processo já foi instaurado. “Quando ela desiste, todo o trabalho dos agentes policiais foi em vão”, completa.

Tensão, explosão e lua-de-mel

A pesquisadora sugere um treinamento especial para os agentes policiais que trabalham com mulheres vítimas de agressão. Estudos sobre o tema mostram que a agressão à mulher ocorre em um ciclo com três momentos distintos: tensão, explosão e lua de mel.

“No primeiro momento, chamado de tensão, a mulher sofre uma série de agressões progressivas, físicas ou psicológicas. No segundo, a explosão, quando ela é, de fato, agredida ou, caso já tenha sido agredida antes, sofre uma agressão tão forte que a deixa hospitalizada e até mesmo a leva a morte. O terceiro momento é a lua-de-mel: o agressor se arrepende, chora e jura que vai mudar. É neste momento que a mulher retira a queixa”, esclarece. “Se o agente policial desconhece essa dinâmica, ele não entende porque a mulher agredida agiu assim”, finaliza.

(Envolverde/Agência USP de Notícias)

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