Assistente Social no Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa – Mestre em Serviço Social. Doutoranda em Serviço Social na UFRJ. Pesquisadora na área de violência de gênero e feminicidios.
A violência de gênero praticada contra as mulheres tem uma expressão letal, ou seja, mulheres morrem em decorrência de vivências violentas, são vitimadas no contexto de uma cultura patriarcal. O homicídio cuja vítima é mulher onde, o machismo, o sexismo e sua identidade de gênero foram fatores fundamentais para a ocorrência do crime, vem sendo chamado de feminicidio para dar visibilidade e politizar este fenômeno que não é de caráter privado ou interpessoal, mas tem numa sociedade desigual sua primeira base.
O debate no Brasil ainda é recente, apesar do último Mapa da Violência (Wailselfisz, 2012) ter apontado crescimento nos homicídios de mulheres. Falar de feminicidios é um ato intencional e tem caráter político. No bojo da discussão emergem concepções distintas, mas também mitos e preconceitos. O exame da literatura1, em especial, latino-americana (o Brasil é um dos últimos países a reconhecer a existência de feminicidios em seu território) e a análise minuciosa da realidade brasileira, num contexto de um grande território com diferenças culturais evidentes, é uma primeira forma de garantir coerência frente ao que se deseja enfrentar.
O primeiro mito que identifico é afirmar que femicidio e feminicidio são fenômenos diferentes. De tudo que já li e ouvi, o que mais me chamou atenção foi a compreensão de que femicidio é todo homicídio com vítima mulher e feminicidio aquele decorrente do gênero da vítima e da violência contra ela praticada. É fato que existem disputas teóricas no campo da análise sobre os crimes e se bem, há autoras que denominam femicidio e outras, feminicidio apresentando concepções até antagônicas, a principal diferença não é de fato semântica. O primeiro uso do conceito se deu em inglês femicide e designava homicídios de mulheres num contexto sexista (Russell, 2006). A tradução mexicana e depois, apropriada por outros países da América Latina como Guatemala e El Salvador, privilegiou o uso de feminicidio para que o termo não fosse usado justamente como feminização do tipo criminal homicídio (Lagarde, 2006). Países como Costa Rica e Chile, fizeram a tradução direta do inglês e usam femicidio. No Brasil, Suely Almeida (1998) foi a primeira a usar o termo femicidio e também traduziu diretamente do inglês. Apesar de não termos nenhum livro traduzido do espanhol ou do inglês, o debate latino-americano tornou-se relativamente conhecido e finalmente, vemos em publicações e na mídia o uso indistinto dos termos. O que me parece realmente importante é a reivindicação de não falar de assassinatos ou homicídios de mulheres quando há violência de gênero e sim de feminicidios (ou femicidios). Nem todo homicídio de uma mulher é um feminicidio, mas há que verificar. O argumento de Lagarde é pertinente e me junto a ele, para não reduzirmos o debate ao campo penal. Quando falamos de feminicidios não estamos necessariamente reivindicando a criação de um novo tipo criminal, mas sim, evidenciando que o machismo mata sistematicamente mulheres.
O segundo mito que identifico está baseado num cinismo de mais alto grau, pois afirma que no Brasil não ocorrem feminicidios. Que esta é uma realidade distante de países árabes que mutilam o corpo das mulheres, da China que assassina bebês do sexo feminino, da Guatemala e da Colômbia que vivem em guerra civil ou do México, onde corpos de mulheres são encontrados violados e mutilados. É até possível que no Brasil, as características dos feminicidios sejam outras. Suspeito que as relações afetivas ainda sejam as maiores causas de feminicidios em nosso país, seguidos do envolvimento com o tráfico de drogas e com as redes de prostituição. Mas não podemos perder de vista que a desigualdade de gênero sustentada num contexto patriarcal é a mesma, e mata mulheres em todo o mundo. Precisamos conhecer quais são as causas de feminicidios no Brasil e denunciá-las. Omiti-las ou negá-las com o mito de “aqui não acontece isto” é violar o direito das mulheres a viver uma vida livre de violência.
O terceiro e último mito que quero apontar é o que invisibiliza o fenômeno ao alocar os fatos no âmbito “passional” ou de pura responsabilidade dos envolvidos. Se de fato, pesquisas vêm mostrando que no Brasil, os feminicidios são de caráter íntimo (Pasinato, 2004, Gomes, 2010), ou seja, são praticados por homens com quem a vítima mantinha ou manteve em algum momento uma relação afetiva, inclusive por seus atuais companheiros e pais de seus filhos, isto apenas revela um tipo de violência estrutural e legitimada socialmente. Se uma, duas, três, mil mulheres morrem neste contexto, certamente ele já deixou de ter qualquer sorte de motivação isolada. Ciúme e dificuldade de aceitação que o relacionamento acabou – motivos frequentemente apontados como causa – são apenas a aparência de um sistema patriarcal que conforma homens e mulheres em relação violentas, cujo fim, pode ser fatal.
Concluo estas notas que são apenas, “começo de conversa”, reafirmando que a apropriação da literatura existente sobre o tema e a análise minuciosa do que acontece em nosso país, pode contribuir, e muito, para desconstruir mitos e potencializar o enfrentamento aos feminicidios.
1 Recomendo a leitura de autoras que têm produções em português Suely Almeida, Rita Segato, Maria das Dores Brito Mota e em espanhol, Marcela Lagarde, Júlia Monárrez, Ana Carcedo e Montsserrat Sagot, que apresentam ampla bibliografia sobre os feminicidios na América Latina.
Bibliografia:
ALMEIDA, Suely Souza de. Femicídio: Algemas invisíveis do público-privado. Editora Revinter: Rio de Janeiro, 1998.
GOMES, Izabel Solyszko. Femicidios: a (mal) anunciada morte de mulheres. Revista de Políticas Públicas, v.14, n1, 2010. Disponível em: . 2010.
LAGARDE, Marcela. Del femicidio al feminicidio. In: Desde el jardin de Freud, vol.6, Universidad Nacional de Colombia. Bogotá, 2006.
PASINATO, Wania. Justiça e Violência contra a Mulher: O papel do sistema judiciário na solução dos conflitos de gênero. 2ed. Editora FAPESP: São Paulo, 2004.
RUSSELL, Diana. RADFORD, Jill. Feminicidio. La política del asesinato de las mujeres. CEIICH, UNAM, 2006.
WAILSELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violencia 2012. Caderno Complementar 1: Homicidio de Mulheres no Brasil. Instituto Sangari. São Paulo, 2012. Disponível em: .
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