segunda-feira, 25 de junho de 2012

Meu nome é doença

Wanderley M. D. Fernandes, Cirurgião, docente de medicina da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS0), integra o Grupo de Estudos da Saúde do Partido Verde (www.wanderleymd.com.br)

A frase do título foi ouvida no corredor de um hospital público do Distrito Federal. Mulher aparentando 60 anos entra pelo pronto-socorro desesperada, suplicando: “Estou morrendo, doutor, por Deus, me salve”. Logo foi interceptada por um guarda da segurança. Indicando o balcão da recepção, disse: “Tem que preencher uma ficha”. E adiantou: “Como é o seu nome?” “Meu nome é doença, senhor”, respondeu uma sôfrega senhora. Seu corpo todo tremia, as mãos formigavam e, parada em pé, chorou.


Cena como essa seria patética se não fosse rotineira, no contexto do que se convencionou aceitar como norma o segurança na chegada dos pacientes às emergências do Sistema Único de Saúde (SUS). É praxe: primeiro, o guarda. Disseminou-se a ideia de substituição do atendimento inicial, que preferencialmente deveria ser médico, qualificado e acolhedor, por abordagens de seguranças fardados na recepção às vítimas da dura realidade dos cidadãos comuns, nas cidades brasileiras.

Na verdade, o que se perde dia a dia é a identidade do ambiente hospitalar público, transvalorando-se como se feiras persas fossem, comunas tribais. Um amontoado de atendentes desinteressadas, numa cultura do multipartilharismo frenético: corredores superlotados, médicos do staff e médicos residentes, estudantes e estagiários, enfermagem e seus auxiliares, atualmente até anônimos, desuniformizados e sem sequer crachás; nutricionistas, fisioterapeutas, laboratoristas, psicólogos e assistentes sociais, todos ao mesmo tempo e no mesmo espaço. Circulam carrinhos de alimentação e da lavanderia, pessoal de limpeza e dos serviços gerais, com máquinas e equipamentos, policiais civis e militares armados, motoristas de ambulâncias, técnicos e burocratas de toda ordem, além dos ditos seguranças fardados.

Conversas, risos e casos pessoais contados em alto e bom tom irrompem no ambiente, sem piedade. Pacientes e acompanhantes se acotovelam à espera ou se refestelam em leitos e macas improvisadas e juntas, na mesma hora e lugar. O silêncio sofre e a vozearia impera, parece os primitivos aglomerados de pestilentos da era babilônica, onde os enfermos eram expostos num mercado e os transeuntes obrigados a perguntá-los sobre suas doenças, para aplicar-lhes uma receita. Era proibido passar pelos doentes em silêncio. Todos tinham que indagar a causa das suas moléstias, retrata o historiador grego Dionysius de Halicarnassus — século 1 a.C (Livro I-197). Até hoje a Babel é o ambiente nos hospitais públicos brasileiros. Faltam direitos e humanos.

Na Idade Média, por influência da religião, os nosocômios se assemelhavam a templos e eram erguidos ao lado de santuários. As congregações prezavam pela associação entre a fé e a assistência médica. O silêncio era obrigatório e fazia parte integrante do tratamento. A modernidade tensiona, dilacera e implanta a cultura do caos hospitalar.

Dizia o professor Miguel Couto (1865-1934), em 1922: “Acima de tudo, o doente”. O desrespeito, a curiosidade indevida e o falatório estridente dos que se tornaram indiferentes ao infortúnio alheio invadiram o universo médico, que silencia frente às externalidades negativas.

Michel Foucault (1926-1984), em O nascimento da clínica (1980), enfatiza: “Quem deverá portanto denunciar os maus-tratos humanos se não os médicos que fazem do homem seu único estudo, e que todos os dias, com o pobre e o rico, com o cidadão e o mais poderoso, nas choupanas ou nos lambris, testemunham as doenças que não têm outra origem senão a tristeza e a servidão?”

“O encontro entre médico e paciente o é entre duas vidas e insubstituível. Cuidar do outro revela o divino entre os dois entes e torna possível um aprendizado e uma compreensão singular e inigualável do sofrimento, para muito além da queixa e do sintoma, do atendimento automático, hierárquico e friamente delimitado” (psiquiatra Luiz Ziegelmann, 2011, em Para muito além dos sintomas).

Aquela senhora brigou na família — o filho preso, o marido desempregado e a filha se prostituiu. Como diz o filósofo francês David Lapoujade: “O corpo se torna na vida doente para afastá-la do sofrimento”. O que estamos esperando?

fonte: artigo publicado em : 23/11/2011 no jornal Correio Braziliense e  Meu nome é doença

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