segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

CADASTRO DE GESTANTES E VIOLAÇÃO DE DIREITOS

por Conceição Lemes - Vio mundo
Maldades têm limite. E época do ano para perpetrá-las, também. Depois de “destruir” pouco a pouco, ao longo do ano, a Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o Ministério da Saúde extrapolou na última semana de 2011. Para ser mais exata no dia 26 de dezembro. Estrategicamente, entre o Natal e o Ano Novo, assinou, autoritariamente, sem debate com organizações que se ocupam da saúde da mulher, a Medida Provisória 557.

A MP 557 institui o Sistema Nacional de Cadastro, Vigilância e Acompanhamento da Gestante e Puérpera para Prevenção da Mortalidade Materna. Além de Padilha, assinam-na a presidenta Dilma Rousseff e os ministros Guido Mantega (Fazenda) e Miriam Belchior (Planejamento).

De acordo com a MP 557, que entrou em vigor em 27 de dezembro:
* Esse sistema tem a “finalidade de garantir a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade da atenção à saúde materna, notadamente nas gestações de risco”.
* Ele é “constituído pelo cadastramento universal das gestantes e puérperas, de forma a permitir a identificação de gestantes e puérperas de risco, a avaliação e o acompanhamento da atenção à saúde por elas recebida durante o pré-natal, parto e puerpério”.
* As gestantes cadastradas terão benefício financeiro de até R$ 50,00, para auxiliar no deslocamento a serviços de saúde relativos ao acompanhamento do pré-natal e assistência ao parto prestados pelo SUS.
* Os serviços de saúde públicos e privados ficam obrigados a garantir às gestantes e aos nascituros o direito ao pré-natal, parto, nascimento e puerpério seguros e humanizados.
Tão logo essas informações caíram nas redes sociais, a MP passou a ser bombardeada, inclusive juridicamente.

“Essa MP é um verdadeiro absurdo, uma falácia por parte do governo federal, pois não atende aos fins para os quais foi criada”, denuncia Beatriz Galli, em entrevista que nos concedeu. “Demonstra falta de compromisso com temas que o Brasil já aderiu e são pauta de tratados internacionais de direitos humanos. Tem ainda várias inconsistências jurídicas e até mesmo artigos inconstitucionais.”
Beatriz Galli é advogada, integrante das comissões de Bioética e Biodireito da Ordem dos Advogados do Brasil, seção Rio Janeiro (OAB-RJ), e assessora de políticas para a América Latina do Ipas, organização não governamental que atua globalmente na áreas de direitos humanos, sexuais e reprodutivos das mulheres.

Viomundo – A senhora integra redes de defesa dos direitos humanos das mulheres e da comunidade jurídica que trabalha com as questões de bioética e direitos sexuais e reprodutivos. Essas organizações foram ouvidas pelo Ministério da Saúde antes da edição da MP 557?
Beatriz Galli – Não. Só soubemos dessa MP após o seu lançamento. Ela foi baixada em 26 de dezembro de 2011 e publicada no Diário Oficial da União do dia 27.
Viomundo – Quem seria o real autor desse “presente” de final de ano?
Beatriz Galli – Não sei ainda, mas posso assegurar que a MP 557 não atende aos fins para os quais foi criada. Tem também várias inconsistências jurídicas e até mesmo artigos inconstitucionais.
Viomundo – No início de 2011, o Ministério da Saúde lançou a Rede Cegonha, que deu muito o que falar. Agora, veio a MP 557. Elas são “parentes”?
Beatriz Galli – Sim. Acredito que fazem parte da mesma estratégia governamental de prevenção da morte materna, ou, pelo menos, essa é a versão oficial que justifica a MP. Porém, considero-a ineficaz para a prevenção da morte materna. Essa MP não terá efeitos práticos na redução da mortalidade materna no Brasil.
Viomundo – Por quê?
Beatriz Galli — O nosso maior problema não é o acesso das mulheres aos serviços de saúde mas a qualidade da atenção nos serviços de saúde. E isso não se altera apenas com uma medida provisória. Afinal, a MP não irá garantir, por exemplo, acesso a exames, diagnóstico oportuno, profissionais treinados em emergência obstétrica, transferência imediata e vaga para uma unidade de maior complexidade.
Por isso, insisto. A MP 557 não terá repercussões na qualidade da atenção dispensada à mulher gestante — é o que de fato impacta na redução da mortalidade materna – nem na organização do sistema de saúde para garantir uma vaga ou leito na hora do parto. Pelo contrário, coloca nas costas da mulher grávida, que recebe o auxílio de R$ 50, a responsabilidade do transporte até a maternidade.
Viomundo – Ao assegurar R$ 50 à gestante que se inscrever no cadastro, a MP 557 não institui a bolsa-chocadeira?
Beatriz Galli – Com essa MP, a mulher passa ser vista como um receptáculo para o desenvolvimento de um novo ser. Viola a autonomia e a dignidade das mulheres, negando-lhes o reconhecimento da liberdade de escolha. Em compensação, tem clara ponderação pró-feto, já que reconduz a mulher à condição de uma incubadora.
Tem mais. De cara, a MP 557 viola a vida privada das mulheres ao criar um cadastro compulsório para controle e vigilância de sua vida reprodutiva. Por isso tem efeito discriminatório.
Viomundo – O que a MP 557 representa para os direitos sexuais e reprodutivos da mulher?
Beatriz Galli – Em nenhum momento, ela os menciona.
Viomundo — A MP não menciona também o aborto. Como se vai fazer um mapa da mortalidade materna no Brasil, ignorando-se uma das suas principais causas no Brasil? O fato de não abordar o aborto já não cria um viés?
Beatriz Galli — Pior que isso. A MP pretende criar um cadastro de gestantes, violando a vida privada e a confidencialidade das informações médicas contidas nas fichas ou prontuários em um momento político de recrudescimento e fechamento de várias clínicas clandestinas de aborto pelo país.
Vou além. Uma vez que legislação brasileira criminaliza a prática de aborto e tem sido usada para fechar clínicas e processar centenas de mulheres, é no mínimo preocupante que o Estado proponha um cadastro de monitoramento e vigilância das mulheres grávidas.

Viomundo – Considerando que já existem políticas, leis, portarias para reduzir a mortalidade materna no Brasil, a MP 557 seria desnecessária, não seria?
Beatriz Galli – Completamente desnecessária. Se o governo quisesse enfrentar a questão, bastaria resgatar o relatório da CPI de Mortalidade Materna, de 2001. Ali estão todas as recomendações em termos de políticas e leis necessárias para a sua redução.
Além disso, a MP 557 anuncia medidas e ações já previstas em políticas públicas e normas. Por exemplo, no âmbito do Ministério da Saúde, existe a portaria nº 1.119, de 5 de junho de 2008, que regulamentou a vigilância de óbitos maternos no âmbito do SUS, executada por meio de parceria com Estados, Distrito Federal e Municípios como uma das ações previstas no Pacto Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal, de 8 de março de 2004.
A referida portaria define diretrizes para investigação de óbitos de mulheres em idade fértil, estabelece os fluxos e prazos especiais para estes eventos, redefine o papel das Secretarias de Saúde de Municípios, Estados e do Distrito Federal, do Ministério da Saúde e dos Comitês de Morte Materna quanto à vigilância do óbito.
Atendendo à deliberação da referida Portaria, foi criado no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde, o Módulo de Investigação de Óbitos de Mulheres em Idade Fértil, que permite o registro das ações de investigação e estudo de cada óbito, pelo Distrito Federal e Municípios, contribuindo para o monitoramento dessa prática. Os resultados oriundos desse sistema permitiram identificar que mais de 70% dos óbitos de mulheres em idade fértil ocorridos em 2010 foram investigados.
Viomundo – Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei que visa pagar à gestante vítima de estupro que não abortar um salário mínimo até que a criança atinja 18 anos de idade. Cria, assim, a bolsa-estupro. Quais os pontos em comum entre a MP 557, que estabelece a bolsa-chocadeira, e a bolsa-estupro?
Beatriz Galli — A garantia de direitos ao nascituro, que vai flagrantemente contra a Constituição de 1988. Portanto, é inconstitucional.
Viomundo – Por favor, explique melhor isso.
Beatriz Galli – A Constituição brasileira não adota a proteção da vida desde a concepção, ou seja, ao nascituro.
Inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou sobre a questão do nascituro. Em maio de 2008, no julgamento histórico da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3.510, que liberou a pesquisa com células-tronco embrionárias no Brasil, o ministro-relator Ayres Brito, afirmou:
O Magno Texto Federal não dispõe sobre o início da vida humana ou o preciso instante em que ela começa. Não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um autonomizado bem jurídico, mas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porque nativiva (teoria ‘natalista’, em contraposição às teorias ‘concepcionista’ ou da ‘personalidade condicional’). E quando se reporta a ‘direitos da pessoa humana’ e até a ‘direitos e garantias individuais’ como cláusula pétrea, está falando de direitos e garantias do indivíduo-pessoa, que se faz destinatário dos direitos fundamentais ‘à vida, à lib erdade, à igualdade, à segurança e à propriedade’, entre outros direitos e garantias igualmente distinguidos com o timbre da fundamentalidade (como direito à saúde e ao planejamento familiar).
(…) O embrião referido na Lei de Biossegurança (in vitro apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível.
O Direito infraconstitucional protege por modo variado cada etapa do desenvolvimento biológico do ser humano. Os momentos da vida humana anteriores ao nascimento devem ser objeto de proteção pelo direito comum. O embrião pré-implanto é um bem a ser protegido, mas não uma pessoa no sentido biográfico a que se refere à Constituição.” (ADI 3.510, Rel. Min. Ayres Britto, julgamento em 29-5-2008, Plenário, DJE de 28-5-2010.)
Viomundo – A MP 557 equipara os direitos da mulher gestante aos do nascituro?
Beatriz Galli – É uma tentativa nesse sentido. Ela reduz ou dilui os direitos da mãe, como o direito à liberdade, já que ela terá a sua gravidez registrada e supervisionada ou vigiada para cumprir os dispositivos da MP.
Pela MP 557, a rigor a mulher terá a “obrigação” legalmente imposta de ter todos os filhos gerados já que estaria sendo monitorada pelo Estado para tal finalidade. Viola-se, assim, o direito à igualdade previsto na Constituição Federal, pois somente as mulheres engravidam e podem gerar filhos.
Viomundo – Ou seja, o Brasil está na contramão.
Beatriz Galli – Infelizmente a MP 557 significa um baita retrocesso nas políticas de direitos reprodutivos das mulheres no Brasil. Estamos, sim, na contramão do que preconiza a própria Organização Mundial de Saúde (OMS).
Setores conservadores, dentro e fora do governo, estão tentando estabelecer uma nova ordem jurídica que desconsidera a mulher como sujeito de direitos constitucionais e direitos humanos.
O Brasil foi condenado recentemente pelo Comitê para a Eliminação da Discriminação contra a Mulher (Cedaw) devido ao caso da afro-brasileira Alyne da Silva Pimentel. Em 2002, então com 28 anos de idade e 27 semanas de gestação, ela procurou uma casa de saúde particular em Belfort Roxo, na Baixada Fluminense, pois estava vomitando e tinha dores abdominais. Uma ultrassonografia constatou a morte do feto.
A casa de saúde transferiu Alyne para um hospital público da região, para que fosse retirado o feto. Como não encaminhou junto qualquer documento que indicasse o seu estado clínico, ela ficou esperando horas no corredor por atendimento. Aí, entrou em coma e morreu por falta de cuidados médicos adequados. Uma morte perfeitamente evitável.
Agora, diante dessa condenação internacional pelo caso Alyne, o Brasil tem de implementar as recomendações do Cedaw (entidade que monitora o cumprimento da Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher) para reduzir a mortalidade materna. Só que preferiu baixar a MP 557, que, em vez de proteger as mulheres da morte materna evitável, viola os seus direitos humanos.
Viomundo — Afinal, que recomendações o Cedaw fez ao Brasil em função do caso Alyne?

Beatriz Galli – Segundo o Cedaw, o Estado brasileiro violou suas obrigações em relação ao acesso à saúde, à Justiça e à obrigação de regulamentar as atividades dos prestadores de serviços particulares. Em função disso, determinou reparação adequada da família de Alyne, incluindo indenização financeira. Fez também estas recomendações gerais:
a) Assegurar o direito das mulheres à maternidade segura e ao acesso à assistência médica emergencial adequada, a preços acessíveis.
b) Proporcionar formação profissional adequada para os trabalhadores da área de saúde, especialmente sobre os direitos reprodutivos das mulheres à saúde, incluindo tratamento médico de qualidade durante a gravidez e o parto, bem como assistência obstétrica emergencial adequada.
c) Assegurar o acesso a medidas eficazes nos casos em que os direitos das mulheres à saúde reprodutiva tenham sido violados e prover a formação de pessoal do poder judiciário e responsável pela aplicação da lei.
d) Assegurar que sanções adequadas sejam impostas a profissionais de saúde que violem os direitos de saúde reprodutiva das mulheres.
e) Reduzir as mortes maternas evitáveis através da implementação do Acordo Nacional pela Redução da Mortalidade Materna nos níveis estadual e municipal, inclusive através da criação de comitês de mortalidade materna em lugares onde tais comitês ainda não existem.
Só que o governo, em lugar de implementar essas medidas, preferiu baixar essa malfadada MP 557, que, repito, em vez de proteger as gestantes da morte evitável, viola os seus direitos humanos.

Beatriz Galli: A MP 557 é um absurdo; em vez de proteger as gestantes da morte evitável, viola seus direitos humanos | Viomundo - O que você não vê na mídia

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