sábado, 2 de agosto de 2014

Narrativas Antimanicomiais: Fechamento do Hospital Mental – Sorocaba

Hospital Mental
A ABRASME SP inicia a Publicação das Narrativas Antimanicomiais. São textos, relatos e depoimentos de usuários, familiares, trabalhadoras (es) e ativistas sobre momentos vividos de defesa dos princípios da Luta Antimanicomial.
Iniciamos esse sessão com o Relato de Carine Sayuri sobre a Transferência dos usuários que estavam internados no Hospital Mental para o Hospital Vera Cruz em processo de Desinstitucionalização.
Mande seu relato, depoimento e texto sobre Momentos Vividos na Luta Antimanicomial: spabrasme@gmail.com

Relato de um dia histórico – fechamento de mais um manicômio em Sorocaba


O Fórum da Luta Antimanicomial de Sorocaba – FLAMAS – desde sua formalização em 2009 esforçou-se em denunciar as violações que ocorriam no interior dos sete hospitais psiquiátricos de Sorocaba e região. A intensidade de suas denúncias reavivaram o movimento antimanicomial brasileiro, que havia se voltado para a constituição da rede substitutiva, depois do fechamento de diversos manicômios no país.
O caso sorocabano, definido como Fortaleza Manicomial, configurou-se como alvo do maior processo de desinstitucionalização no Brasil, após a assinatura do Termo de Ajustamento de Conduta – TAC – no final de 2012, prevendo três anos para o fechamento dessas instituições de clausura.
O hospital psiquiátrico Vera Cruz, noticiado nacionalmente por suas péssimas condições, transformou-se em Polo de Desinstitucionalização, ou seja, local no qual os esforços são catalizados para que os moradores retomem ou construam a vida fora do isolamento manicomial. Neste polo todos os moradores dos quatro hospitais psiquiátricos de Sorocaba passarão, à medida que os manicômios forem fechados. Os outros três hospitais psiquiátricos da região, localizados em Piedade e Salto de Pirapora, passam por desinstitucionalização coordenada pela Secretaria Estadual de Saúde, responsável por sua gestão.
No primeiro semestre de 2014 foi fechado o primeiro manicômio, conhecido por Jardim das Acácias, momento em que cerca de 100 pessoas foram transferidas para o polo de desinstitucionalização Vera Cruz. No último dia 23 de julho de 2014 aconteceu o fechamento do segundo manicômio, o Hospital Mental Medicina Especializada.
O fechamento desse segundo manicômio configura-se como mais um conquista do movimento social e da política nacional de saúde mental, ao mesmo tempo que uma rede de atenção psicossocial está sendo construída para oferecer cuidados às pessoas que passam por sofrimento psíquico intenso.
Abaixo o relato pessoal de como foi esse dia histórico.
Quarta-feira, 23 de julho de 2014.
Acordo cedo para mais um dia de trabalho. Hoje minha profissão se define de forma clara: fechar mais um dos manicômios da cidade conhecida como polo manicomial: Sorocaba. Dos quatro manicômios a serem fechados esse é o segundo, mas nosso trabalho não está no meio do caminho, temos muito que fazer. Além do fechamento desses lugares, símbolos máximos da exclusão, temos muitos indivíduos a se descobrirem como pessoas e talvez essa seja a parte mais difícil, diante de tantos anos, décadas, sendo tratados como objetos.
Duzentos e dezoito. Esse é o número oficial de mulheres enclausuradas pelos mais diversos motivos, embora a desculpa seja de sofrimento psíquico, deixando de lado o fato de que o ser humano é um ser do sofrimento.
A operação é de guerra. Embora o manicômio tenha rompido seu convênio com a prefeitura há meses, por irregularidades, um dos sócios foi bem claro ao dizer que não liberaria as pacientes, mantendo-as no interior da instituição.  Não houve negociações amigáveis e, dessa forma, nossa entrada só poderia ser possível através de trâmites judiciais. Muitos guardas civis e alguns membros da polícia militar estão dispostos a nos auxiliar. No caminho ao manicômio nos dividimos para falar-lhes da luta antimanicomial no Brasil e da necessidade de protegermos as internas, a maioria se comove, comprometendo-se com uma atuação cuidadosa na transferência.
Chegando ao asilo encontramos alguns poucos familiares que discordam de nossa atuação. Entendem que seus parentes estão num lugar bom, tuteladas da melhor forma possível. Mas como culpa-los de uma relação manicomial legitimada e fortalecida por quase um século de discurso médico-psiquiátrico da cidade? Discurso esse que orientou como melhor conduta, aos familiares, o afastamento de seus parentes? Ou ainda, formalizando a incapacidade dos reclusos através de centenas de curatelas? Impossibilitando o mínimo de liberdade através da exclusão no manicômio físico e químico.
Também somos recepcionados pela mídia: muitas câmeras e repórteres esperam para registrar o que será hoje nosso trabalho. Alguns empecilhos atrasam nossa entrada, são muitos interesses em jogo, pois fecharemos o que outrora foi denominado como “negócio da china”, política e economicamente. Quando conseguimos entrar todos estão apreensivos, não sabemos ao certo o que foi passado para as centenas de mulheres, se fomos definidos como aqueles que as deixariam sem lugar para morar, que as levariam para um lugar ruim, que a largaríamos nas ruas, parte do discurso manicomial hegemônico.
No interior manicômio a realidade é outra. Encontramos mulheres curiosas em saber o que fazíamos ali e quando informamos que nós sairíamos daquele lugar, para em breve voltar a viver em sociedade, tivemos sorrisos da maioria. Algumas agradecem, outras dizem que não gostavam de apanhar. Poucas dizem não querer sair, nada que uma conversa amigável, explicando as razões, não resolva.  A grande maioria lúcida, em plenas condições do retorno imediato ao convívio social. Percebem logo que a equipe é bem intencionada e preocupada com o cuidado oferecido.
Na ala das moradoras todos os pertences são recolhidos, vidas inteiras naqueles espaços, algumas ali desde a abertura do manicômio, há quarenta e três anos. Na ala infantil, assim denominada pelos trabalhadores, não há crianças, mas pessoas infantilizadas, não perguntei por quem, quando obtive essa informação, estava muito claro.
Na parte externa das alas há uma suposta “residência terapêutica”, na qual três mulheres autônomas moram. Uma delas nos informa que tem problemas para dormir, por isso está há muitos anos no manicômio, não se lembra mais quanto tempo. Ela trabalha na instituição, auxiliando na lavanderia, na cozinha, etc., e ganha entre cem e duzentos reais por mês. Sua companheira de casa diz que lá é o lugar privilegiado para se morar dentro do manicômio e que elas são as melhores dali, as três trabalham na instituição. Perguntamos por que elas nunca saíram e a resposta foi pela ausência de alta médica.
Goffman já nos falava dos privilégios conseguidos pelos internos nas instituições totais a partir do trabalho. Embora não remunerados, ou remunerados minimamente como no caso citado, a execução da tarefa traz a possibilidade da circulação dentro da instituição. A relação de submissão estabelecida nessa proposta torna o interno ainda mais refém, já que diante da recusa ao trabalho pode perder o que o sustenta psiquicamente, o lugar socialmente construído dentro do espaço de clausura. Se partirmos para a legislação brasileira sobre o trabalho verificamos inúmeras irregularidades, desde a remuneração inferior ao mínimo estabelecido ou a ausência de direitos trabalhistas.
Os profissionais da saúde mental estão muito próximos das definições teóricas do que seria o manicômio, passando por Goffman, Foucault, Basaglia, Rotelli, Amarante, Nicácio, Yasui, Costa-Rosa, entre muitos outros, contudo a construção dessa práxis não deixa de nos abalar. Vivenciar o manicômio é algo muito intenso, saímos sempre modificados dessa experiência, chocados pela intenção e intensidade da relação manicomial produzida pela sociedade.
Aos poucos todas as mulheres ocupam seus lugares nos ônibus que as levará para o Polo de Desinstitucionalização Vera Cruz, local ainda de instalações manicomiais, mas com profissionais muito engajados em proporcionar um lugar mais possível de se viver, com a perspectiva do retorno à sociedade. O que não deixa de ser um enigma para alguns, como explicar o que é viver num bairro, podendo sair de sua casa quando quiser, ou podendo aceitar e concretizar alguns desejos possíveis? Como explicar o que é viver em sociedade para a senhora que nasceu em Franco da Rocha, filha de pais com transtornos mentais, que sempre esteve institucionalizada? Com que cores podemos desenhar a liberdade, para olhos escurecidos por anos de cárcere e isolamento?
O dia-a-dia das equipes de trabalhadores em Saúde Mental do município se configura por muito trabalho, não apenas para o desmonte do manicômio em suas estruturas físicas, mas na desconstrução de uma concepção de que o isolamento é terapêutico. Contudo, não podemos nos esquecer que outras formas de manicômio são concretizadas em nossos dias. Se desmontamos o que muitos chamam de hospitais psiquiátricos, vemos a construção de comunidades terapêuticas, na contramão da Atenção Psicossocial. E o que falar do manicômio químico, que de forma muito mais barata mantém a pessoa refém de si mesma através da medicação excessiva. Não percamos de vista que toda essa produção é legitimada pela nossa sociedade, que também demanda por esses lugares de exclusão. Os trabalhadores da Saúde Mental têm pela frente a desconstrução de algo muito mais sutil do que o aparato manicomial concretizado em suas paredes, têm pela frente a contestação de um modo de produzir subjetividades da pela nossa sociedade capitalista. Nós, trabalhadores e militantes da atenção psicossocial, nos denominamos revolucionários, no mínimo na própria posição de construção de relações, diferente da hegemônica.
Carine Sayuri Goto

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